terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Autocensura, fronteiras e lembranças aleatórias

Aline comenta em seus Pensamentos Públicos sobre o dilema da autocensura. Respondi dizendo que a autenticidade é uma das suas grandes e muitas virtudes. Todos temos um instinto de autopreservação que funciona no piloto automático. É ótimo quando a gente consegue relaxar e deixar que esse instinto dê o tom das coisas que a gente expressa. Sempre que a gente se bloqueia e limita nossas manifestações ao "socialmente aceitável", é grande o risco de deixar algumas preciosidades trancadas no baú. Aí lembrei de Henry Miller, cujos livros autobiográficos possivelmente são os mais sinceros da literatura mundial.

Uma coisa puxa outra: lembrei também de uma cena do livro Viajante Solitário, de Jack Kerouac, que acabo de ler. Kerouac estava mochilando pela Europa e tinha acabado de entrar na Inglaterra, vindo da França de barco. Os policiais da alfândega o detiveram e começaram o interrogatório: "O que veio fazer no Reino Unido só com 15 xelins no bolso?" Ele respondeu que era escritor, ia pegar um cheque de direitos autorais e a história podia ser comprovada com o editor dele em Londres. Mas era sábado, ninguém atendeu o fone. Aí ele teve uma lembrança, revirou a mochila e pegou um recorte de revista: era um artigo assinado por ele sobre Henry Miller. O oficial disse: "Miller? Há alguns anos também foi detido por nós, escreveu um monte de coisas". (Ih, fudeu!, K. deve ter pensado). Mas ficaram satisfeitos com a identificação e o liberaram.

Isso me lembrou um caso engraçado acontecido comigo no Rio Grande do Norte - Ayres, já te contei essa? Eu tava indo acampar em Barra do Punaú, umas três horas ao norte de Natal. Punaú é um riozinho que desagua entre dunas no meio de um coqueiral à beira-mar - descrição pobre pra um lugar paradisíaco. Ayres me recomendou falar com um pescador local amigo dele, Zé Leiteiro. Quando lá cheguei com uma galera, fui recebido por um homem com cara braba, dono do terreno que margeava o riacho. Fui logo perguntando por Zé Leiteiro e aguardando o momento propício pra pedir permissão de armar a barraca. Ele respondeu na lata: "Você é amigo de Zé Leiteiro? Já tá perdendo ponto comigo!". (Ih, fudeu!, pensei) Mas acabou deixando a gente acampar. Eu soube depois que Zé Leiteiro era posseiro antigo de um terreninho encravado bem no meio do latifúndio do sujeito. Esse pescador nos recebeu com grande hospitalidade. A sombra dos coqueiros depois virou um hotel feioso, mas aí já é outra história.