segunda-feira, 21 de agosto de 2006

Os igarapés da memória

Recebi por e-mail, da amiga Lícia, artigo do escritor Milton Hatoum sobre o rio Negro e seus igarapés, do qual pincei os trechos abaixo. É um tema que me traz recordações intensas. Tomei muitos banhos pelado nos igarapés de Manaus, onde vivi dos quatro aos seis anos. Não cheguei a ter, como Hatoum, o primeiro encontro sexual nesse paraíso aquático cor de mel. Minha iniciação foi de outra natureza: a percepção da coisa antes da palavra, a sinestesia atordoante dos sentidos, o riso infantil de liberdade. Parti de Manaus em 1970 para só voltar vinte anos depois e ver os efeitos da Zona Franca: meus amados igarapés transformados em esgotos fedidos a céu aberto, em torno de favelas miseráveis de palafita. Por quanto tempo o rio Negro vai sobreviver, Hatoum? Gostaria muito de acreditar que as nossas lembranças doces podem de alguma forma servir de freio a essa destruição.

(...) Em menos de vinte anos, os igarapés de Manaus tornaram-se canais poluídos onde nem um louco ousaria banhar-se. No entanto, nos anos 60, até os moradores do hospício de Flores freqüentavam os balneários públicos da cidade. Fugiam do inferno para nadar e mergulhar.

Lembro da tarde em que um dos fugitivos foi capturado no balneário 15 de Novembro. Ele estava nu, brincando nas águas escuras e limpas do igarapé. Ria de tanta liberdade, os braços erguidos para o céu cheio de nuvens espessas como se fossem blocos de mármore. (...)

Paisagens vivas da cidade, esses caminhos de água foram fontes de prazer, leitos aquáticos de experiência erótica e encontro carnal. Na minha memória, o primeiro encontro com uma mulher aconteceu num desses balneários escondidos, quase clandestinos numa cidade ainda pequena e provinciana.

Namoramos no rio, brincamos até o sol da tarde esquentar a água e a areia. Um namoro com tantos volteios e imersões... Amor sem palavras, como se fôssemos estranhos ou mudos... Depois deitamos no areal próximo da floresta e mergulhamos no sono de quem se esquece do mundo. No fim da tarde ela já não estava mais comigo. (...)
Do texto Rios da nossa aldeia, por Milton Hatoum, autor dos romances Dois Irmãos, Relato de um Certo Oriente e Cinzas do Norte.

~

Em tempo: Relato de um certo Oriente é um livro maravilhoso, que bate forte na alma de nômades como eu. Li também Cinzas do Norte e gostei muito.