quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Espiral de calamidades (crônica de Felipe Lenhart)

Estou em SP a trabalho por dois dias, mas continuo acompanhando de perto os acontecimentos de Santa Catarina. Republico na íntegra esta crônica de emergência de Felipe Lenhart, que captou bem o espírito do momento.

Espiral de calamidades

Sujos, sufocados e famintos, fogem os bichos de dentro das tocas, de cima dos ninhos, do meio do mato. Há muito a terra treme, desliza e se desmancha sob o seu peso. Há muito caem galhos e despencam árvores sobre a sua cabeça. A caça sumiu, a comida já não existe e o risco de virar presa assusta e enxota os bichos para fora das tocas alagadas, dos ninhos desfeitos, para longe do mato revirado e inabitável. Então eles vêm dar na rua. Rastejam pelo gramado dos quintais, escalam cercas e calçadas, pulam muros com a agilidade que a fome ainda não consumiu. Correm desembestados pelas valas, pelos córregos, pelas trilhas e picadas que levam às casas e aos edifícios, às lojas e mercearias, aos supermercados e abrigos. Está quase tudo submerso – servidões, ruas, avenidas, cruzamentos, garagens, porões –, mas para os bichos sem-teto estes lugares são pousos distantes o bastante do pesadelo do lar submetido à força hostil da enxurrada. Eles reviram a imundície das sarjetas, os dejetos nos terrenos baldios, as latas e os sacos de lixo espalhados em desordem. Penduram-se em árvores que resistiram, cavam novas tocas no terreno seco e firme que porventura descobrem em meio ao concreto encharcado da cidade. Urinam, defecam, canibalizam-se entre si, espalhando sangue, suor e excrementos na água suja de areia que viaja às correntezas por cada bueiro, por cada ruela. E é quando essa torrente podre atinge a altura do teto, depois de ter engolido as flores do jardim, o tapete da sala, os sofás, o carro na garagem, as camas e os armários, queimado eletrodomésticos, é nesse momento que, sujos, sufocados e famintos, saem os homens de dentro das tocas, de cima dos ninhos: para fora de suas casas. Não há comida há dias, nem energia elétrica para aquecer ou ligar o que for, botar em funcionamento a parafernália eletrônica que, por vezes, nos parece inútil. As encostas dos fundos do terreno já desbarrancaram, e o barro, o lodo, a massa compacta avança a cada hora, derrubando muros, forcejando portas e janelas. A chuva não dá trégua - há semanas varia da garoa ao temporal. As gosteiras se reproduzem, reproduzem-se os choros, os suspiros, o desespero. À mínima estiagem, o pai sai à rua com água quase pelo peito e se junta a outros pais. Sem o auxílio de bombeiros e de soldados, que não conseguem alcançar a rua isolada, esses homens pegarão em pás, empurrarão barreiras, erguerão caixas d'água, farão o diabo para que a enchente não mate a todos. Na outra ponta da família, as mães já não toleram a fome dos filhos. Com o olhar vidrado e carregando uma sombrinha, elas saem às ruas ao cair da noite. Investigam, pedem, negociam, por fim suplicam a quem encontram: uma caixa de leite, um saco de açúcar, um quilo de arroz. E se você, por acaso, sorte, sentido de prevenção ou classe social, não está enrodilhado nesta espiral de calamidades, vai ficar bastante impressionado quando for abordado por umas dessas mães. Porque, como os bichos, elas estarão caçando.

Crédito: DC Online

COMO AJUDAR DESABRIGADOS E DESALOJADOS EM SC?

Para doar dinheiro:

Defesa Civil
Banco do Brasil - Agência 3582-3, Conta Corrente 80.000-7.
Besc – Agência 068-0, Conta Corrente 80.000-0.
(O depósito deve ser creditado ao Fundo Estadual de Defesa Civil-Doações.)

FIESC
Banco do Brasil - Agência 3425-8, Conta Corrente 21.000-5, CNPJ: 83.873.877/0001-14.

Para doar alimentos, remédios, roupas, colchões e água potável:

Consulte lista de locais de doação separados por cidade no hotsite especial SOS SC do clicRBS, aqui.