sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Uma visita à área vermelha no Morro do Baú

Cheguei ontem de uma viagem de trabalho a Ilhota e Blumenau, onde fui levantar informações pra uma reportagem sobre a reconstrução depois da enxurrada. Foram dois dias impactantes, não só pelas cenas de destruição que pude presenciar, como pelo trauma emocional das pessoas com quem tive contato. Ouvi histórias de perdas terríveis que ainda estão sendo assimiladas com dificuldade (atenção psicólogos, Santa Catarina precisa de voluntários!). Também pude observar belos exemplos de força de caráter, solidariedade e coragem diante das adversidades.

Fui acompanhado da repórter fotográfica Juliana Kroeger, da professora de jornalismo Raquel Wandelli (Unisul) e do estudante de jornalismo Vicente Figueiredo (faculdade Estácio de Sá). Depois de passarmos por duas barreiras policiais, entramos na "área vermelha" da região do Morro do Baú, no município de Ilhota, onde o acesso ainda está parcialmente interditado pela Defesa Civil por causa do risco de novos deslizamentos de terra. Eu já esperava encontrar uma situação feia, mas a realidade conseguiu se mostrar pior que as cenas mostradas na tevê. Três semanas depois da enxurrada, o quadro ainda é de devastação.

Braço do Baú é uma comunidade agrícola de 1.300 habitantes onde morreram 13 pessoas soterradas na tragédia. Entramos na "área vermelha" acompanhados de Nelson Richarts, dono de um posto de gasolina e de uma pequena facção de toalhas que se ofereceu para nos guiar. Richarts perdeu oito parentes e dois funcionários. Toda a área permanece sem energia elétrica e com acesso precário. Seguimos até o mercadinho Richarts, de um primo dele, o último ponto onde dá pra ir de carro - a partir dali as estradas foram varridas do mapa, isolando as comunidades do Alto do Baú e do Baú Seco.

Marrom é a cor predominante. A estrada barrenta margeia um riacho turvo que teve o curso desviado. Pelo caminho, árvores e postes tombados, detritos de todo tipo. Cheiro de matéria orgânica em decomposição. Residências, pequenos negócios e galpões destruídos. Muitas casas abandonadas com portas e janelas abertas, indicando que seus moradores deixaram tudo pra trás às pressas. No jardim de uma delas, estátuas de Branca de Neve, do Príncipe, dos Sete Anões e da Bruxa estavam cobertas de lama até a cintura. Reproduções de estátuas greco-romanas jaziam como que abatidas por um pelotão de fuzilamento. Na sala e nos quartos, fotos dos familiares na estante, um crucifixo, poltronas, papéis, roupa de cama. E muita lama.

Gentil Pedro Reichert, dono da Marcenaria São Pedro, mostrou como as máquinas de sua empresa foram soterradas pela lama vinda do morro. Estava revoltado com alguns jornalistas, que atribuíram o desastre ao desmatamento para extração de madeira ("aqui nós sempre trabalhamos com madeira de reflorestamento vinda do Paraná") e para plantações de banana - os deslizamentos, pelo que pudemos observar, ocorreram em lugares de mata fechada. Havia também uma tensão visível dos locais em relação aos policiais militares - que restringem o acesso - e aos especialistas, que vão e vêm e não lhes dão retorno sobre as avaliações técnicas.

Uns poucos moradores estão visitando pela primeira vez a área interditada e ensaiam um tímido início de limpeza dos estragos nas casas liberadas pela Defesa Civil (as marcadas com a letra C permanecem com acesso proibido). Vi uma tristeza imensa nos olhos dessas pessoas, não só pela perda do que conseguiram juntar com anos e anos de trabalho, mas também pela maneira súbita como tantos parentes, amigos e vizinhos desapareceram. Lembrei de um conto de Guimarães Rosa em Sagarana sobre uma vila mineira atacada pela malária. Minha impressão é que aquele lugar tende a definhar. Muitos já foram embora, ou por não terem mais onde morar, ou porque querem esquecer o que viveram ali. Na volta, paramos no posto de Nelson Richarts para deixá-lo e ele nos fez uma gentileza que mostra a hospitalidade da gente local: pegou nossas galochas enlameadas e as lavou ele mesmo, uma por uma, com jatos de água sob pressão.

O Braço do Baú ficou pra trás e seguimos pela estradinha entre arrozais soterrados e uma linda paisagem de morros verdes até Baú Baixo. Lá, próximo à BR-470, em torno de 70 pessoas estão morando em um ginásio de esportes e 150 fazem as refeições. Um surto de diarréia entre os desabrigados havia sido recentemente debelado pela Vigilância Sanitária e os técnicos faziam uma palestra sobre como cuidar da água.

Aos poucos vou contando mais e publicando algumas fotos.