segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Castelo dos Sonhos: entrevista com Tatiana Cardeal

Há poucas semanas contei sobre um prêmio que minha amiga Tatiana Cardeal, fotógrafa documentarista, foi receber na China. Pois mal retornou ao Brasil, ela já recebeu outro: o Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, em parceria com Marques Casara, com a reportagem Castelo dos Sonhos [pdf], sobre exploração sexual de crianças e adolescentes ao longo da BR-163. Nesta entrevista, Tatiana conta como foram os bastidores dessa apuração.

DVeras em Rede - Como foi o desafio de fazer uma reportagem fotográfica sobre um tema que envolve tantos aspectos delicados do ponto de vista psicológico, legal e de segurança?


Tatiana Cardeal - Foi difícil, mas desafiador, e eu gosto muito dos desafios que me trazem um sentido. Não sou exatamente uma fotojornalista, meu trabalho é mais documental e bem mais lento, então, em no início achei que poderia não funcionar bem, mas acabei me surpreendendo bastante com minhas próprias reações. Fotografar escondida ou em risco não é a minha rotina, nem algo que eu tenha prazer em fazer. Houve momentos em que tive muito medo e outros em que surpreendemente me vi coordenando a situação com certa excitação para obter a melhor momento/ângulo de uma foto. Havia uma série de cuidados sobre o que fotografar e quando fotografar, não dava pra chegar clicando. Também havia o desafio de encontrar imagens fortes e/ou sensíveis que contassem a história e que fossem publicáveis, já que não se pode expor as imagens das vítimas da exploração sexual.

O que mais a impressionou? Houve momentos em que você hesitou em clicar?

Tatiana - Muitas coisas me impressionaram. Como cena, uma das mais impressionantes foi quando chegamos e passamos pela "avenida principal" de Castelo. Um grupo de cerca de sete meninas, muito novas (acho que entre 12 e 15 anos), semivestidas, sentadas na mesa de bilhar da varanda do boteco/bordel. A ausência do poder público alí impressiona, assim como as péssimas condições da estrada de terra (foram 6 horas para cobrir os 200 km), que separa Castelo da "civilização", uma área erma onde praticamente não se encontra nada. Como referência, a região é próxima de onde caiu o Boeing da Gol em 2006, e que foi uma enorme dificuldade de mobilidade para o próprio exército. Também me impressionou muito a cena de uma garota franzina de 12 anos amamentando seu bebê; e em especial a "normalidade cultural" com que o sexo com menores é tratado, ao mesmo tempo em que provoca vergonha e receio nas famílias da vítimas.

O momento em que hesitei não foi pela imagem da foto em si, mas pela pressão psicológica em que estava. A gente já sabia da fama violenta da cidade... um conselheiro tutelar de outra cidade entrou em pânico quando o Marques decidiu que precisávamos ir lá. Mas já em Castelo, depois de entrevistar o jornalista que estava ameaçado de morte, e ele mostrar uma série bizarra de fotos que fez dos assassinatos da região (que não aguentei ficar vendo, porque não eram somente corpos assassinados, mas mortes decorrentes de violência bizarra e brutal, com técnicas de tortura requintadas e sádicas, que expunham os corpos posteriormente como "mensagem" para a população local), e eu ainda precisava fazer duas últimas fotos, em público, na avenida principal e na delegacia. Eu estava tão chocada com o depoimento e a brutalidade das imagens do jornalista, que o Marques praticamente me empurrou pra fora do carro para fotografar.

Pode contar um pouco sobre o lado técnico de fazer uma cobertura fotográfica na umidade amazônica? Como você lida com o dilema entre a necessidade de carregar equipamento pesado e a de ser discreta?

Tatiana - Bom, a Amazônia é gigantesca, e oferece condições climáticas variadas. No caso dessa região no norte do Mato Grosso, não fomos na época das chuvas, então eu tinha mais preocupação com o poeirão vermelho da estrada de terra do que com a umidade, vivia protegendo a câmera e limpando. Já no Amazonas, em São Gabriel da Cachoeira encontramos temperaturas altíssimas com extrema umidade, a ponto de a cola do espelho da minha câmera derreter (e da filmadora parar de funcionar subitamente algumas vezes). Consegui colar novamente o espelho com uma versão enigmática de SuperBonder, a TreeBonder, única alternativa disponível na cidade indígena... por sorte colou e resolveu. Outra coisa que ajudou é ter uma mochila tropicalizada, que veda 100% contra chuva, e até protege na queda do equipamento na água (a mochila fica boiando no caso de uma voadeira virar...).

Normalmente não carrego muito equipamento. De mais pesado são duas cameras, três lentes médias e um flash. Se não ía muito longe, só uma camêra. Mas nada que não caiba em uma mochila média e que eu não possa levar.

Admiro a maneira como você reorientou a carreira bem-sucedida de diretora de arte para recomeçar - e obter reconhecimento internacional - na fotografia de temas sociais. O que moveu você nessa mudança e como ela se deu?

Tatiana - Obrigada, Dauro, mas saiba que essa mudança de carreira não foi nada muito planejado. Acho que tive uma boa dose de sorte, pois ao sair da Editora Abril eu já sabia que queria continuar na área social e não queria mais fazer revista puramente comercial. Estava fazendo uma pós graduação em Mídias Interativas, algo meio novo e experimental na época, e que me deixou bastante antenada com as possibilidades da internet. Fui publicando imagens de temas que me interessavam e pesquisas visuais que eu fazia como estudo e hobby. Aí fui recebendo um grande feedback que me encorajou a continuar produzindo mais e que aos poucos tornou-se trabalho. Ainda naquele período, algumas redes que eu frequentava e publicava só falavam em inglês, e acredito que foi aí que o trabalho ganhou alguma projeção fora daqui.

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Leia também a entrevista com Marques Casara.