A "voz certa" para o nosso protagonista-porco foi muito debatida durante a gestação do filme. Da força dessa interpretação dependeria em grande parte uma narrativa verossímil. Apostávamos no recurso que, no meio dramatúrgico, se conhece como suspensão da descrença: o público se dispõe a aceitar a implausibilidade de uma situação (no caso, o espírito de um porco que conta uma história), em troca da premissa de entretenimento. E a escolha do ator Renato Turnes (à esquerda, junto comigo e com o Chico, na foto de Lucas Barros) revelou-se uma opção feliz. Pedi a ele que descrevesse a experiência.
Nunca imaginei que eu tivesse voz de porco. Mas um dia o Faganello pediu pra eu gravar um áudio, lendo um poema do Walt Whitman. Gravei um trecho das Folhas de Relva num tom meio Pereio e mandei. Achei canastrão. Mas acho que ele gostou porque depois de alguns dias eu tinha em mãos o texto de Espírito de Porco e um DVD demo do documentário. Depois do impacto inicial com a força visceral das imagens percebi a idéia: o texto na voz antropóide do porco deveria relacionar-se com o que se via, gerando uma tensão poética e irônica. Imaginei essa voz sem mimetismos suínos, uma voz inteligente e altiva. Um porco - rei da pocilga - orgulhoso de sua linhagem limpa, olha os humanos do alto de sua sabedoria animal e descreve seus vícios, aponta suas falhas. Denuncia a sujeira da civilização e clama por justiça para sua espécie. Porco morto, ele é espírito com voz, e seu discurso é uma espécie de metafísica da porcaria. Durante as leituras os diretores foram indicando passagens importantes, clareando intenções e descrevendo curvas e pontos de virada. No estúdio enfim, o porco falou. Acho que o resultado soa humano, ainda que porco. Quem assistir o filme deverá reparar no perturbador close up no olho de um porco. A imagem não me sai da cabeça. Esse plano revela a estranha ligação porco-homem. Parece que ele pensa. Certamente ele sente. Nesse olho está o personagem. Ou seu espírito.
Renato Turnes
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