Dou continuidade à série Humanos com minha amiga Eliane (Nane) Faganello de Som, catarinense de Seara que vive em Stuttgart, Alemanha, com o marido e a filha. Nane é psicóloga e faz um bonito trabalho com mulheres em situação de vulnerabilidade - principalmente as de origem turca e de outros países muçulmanos. Ao mesmo tempo em que as ajuda a se alfabetizarem em alemão, ela estimula o fortalecimento da autoestima dessas imigrantes, para que enfrentem o machismo e conquistem seu lugar no mundo. Não por acaso, usa o método Paulo Freire.
Propus entrevistá-la e ela concordou. Antes que eu fizesse as perguntas, me enviou como introdução um relato tão rico, tão impregnado de força e generosidade, que achei melhor publicar assim mesmo, em primeira pessoa. O depoimento que se segue está praticamente na íntegra. Suprimi só um ou outro detalhe agora irrelevante, como a proposta de que fizéssemos a entrevista pelo skype e a referência a férias no Brasil. "Dauro, eu não sei escrever curto e bonito, como os bons jornalistas", me disse ela. "Também não sei pôr as vírgulas nos lugares certos e me perco em análises". Pois eu discordo, Nane. Adorei seu texto.
p.s.: a Nane é parceirona no filme Espírito de Porco desde os primeiros passos, quando fez uma ampla pesquisa em bibliotecas alemãs. Coautora do roteiro, deu sugestões sempre pertinentes durante toda a produção e edição do documentário.
Devo dizer que não sou tão interessante como tu pensas, nem o meu trabalho tem dimensões tão grandes a ponto de eu imaginar que possa vir a melhorar o mundo. Dentro deste microuniverso em que estou envolvida faço coisas simples, que me permitem uma certa movimentação intelectual e me dão muita alegria. Sei que ajudo essas pessoas e isso me faz bem. Também eu me defronto com o novo, aprendo e me transformo. E é legal assim.
Trabalho em vários lugares, ou seja, em instituições certificadas que recebem dinheiro público para projetos sociais, sobretudo na área de política de integração, que é um dos temas centrais dos últimos dez anos. O governo e a União Européia repassam o dinheiro dos projetos sociais e interculturais para essas instituições, que se encarregam de contratar pessoas e instrumentálizá-las para o trabalho. Tudo é com certificação e qualificação e acompanhado de cursos de aperfeiçoamento, certificados e coisa e tal.
Num desses lugares, trabalho com um grupo de mulheres de várias nacionalidades e religiões, como turcas muçulmanas, curdas alevitas, albanesas desorientadas e até uma brasileira mal-tratada pelo marido. São mulheres que precisam de uma certa estabilidade emocional e que ninguém, na verdade, sabe o que fazer com elas. A forma de conseguir fazer com que elas saíssem de casa foi criando um grupo de alfabetização, o que é aceito pelas famílias e legitimado pelo governo. Assim, o espaço de alfabetização é a possibilidade de sair de casa, de se defrontar com outros valores e realidades e de questionar a sua própria.
Tenho plena consciência de que muitas delas jamais abandonarão seus véus, mas também não precisam, nem essa é a proposta. O fato delas se sentirem respeitadas em sua cultura, língua e religião, faz com que aprendam a aceitar as outras culturas ao seu lado. Elas se tornam mais conscientes, tolerantes e capazes de dizer: " Ich bin ok, wie ich bin. Du bist ok, wie du bist." O que quer dizer: "Eu sou legal como eu sou. Você é legal como é."
A questão central do trabalho é a alfabetização e a manutenção destas mulheres num curso ou em algum lugar onde possam se defrontar com seus próprios valores. Eu ajudo elas a pensar sobre a língua, sobre o processo de alfabetização, sobre problemas nunca tematizados e a resgatar um pouco da sua identidade.
Não posso dizer que sou alfabetizadora, porque são elas mesmas que se alfabetizam, através da leitura do seu mundo e da sua posição na história. Eu ajudo elas a se manterem no grupo, a pensarem sobre temas difíceis e complexos, como sua própria família e a realidade onde vivem. Também não posso dizer que sou psicóloga, nos modelos tradicionais. Sou uma psicóloga que trabalha com pessoas em processo de alfabetização, de aprendizagem e de reestruturação da sua própria identidade.
O grupo é bem heterogêneo e da análise da realidade individual e grupal surgem palavras para escrever (e elas escrevem desesperadamente, Dauro!). As palavras selecionadas, resultantes de nossas conversas são escritas e trabalhadas, como no método Paulo Freire e aos poucos elas conseguem ler cartazes, livros e a sua própria vida.
Normalmente surgem temas pesados para conversas, tais como Gewalt (violência), Wut (raiva), schlagen (bater) e nas últimas semanas surgiram questões belíssimas: - por que só as mulheres muçulmanas não podem casar quando o marido morre? Ou ainda, por que os homens podem casar de novo, mas as mulheres não? Por que as mulheres muçulmanas não podem freqüentar piscinas mistas, mas os homens sim?
Trabalho com este grupo duas vezes por semana e muitas das mulheres têm "desabrochado", dia por dia, como diria o padre Pinto. Festejamos o carnaval com música árabe e saí cambaleando de tanto comer daqueles charutinhos de folha de parreira recheados com carne de ovelha, mas confesso que nunca vi aquelas mulheres tão felizes.
Uma delas perdeu a família no Iraque, trata um câncer de mama e é tiranizada pelo marido, que a controla pelo celular, chamando-a para preparar chás e coisas a fins. Na semana passada ela conseguiu dizer "não" a ele, pelo telefone, de uma forma tão serena e educada que as outras aplaudiram. Eu sinalizei, no final, que ela estava dizendo "sim" para ela mesma. Daí elas escolheram uma palavra bem bonita para trabalhar nos próximos dias: respeito.
Um abraço bem grande,
nane
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